
"Às vezes sonho que estou num balão de ar quente a sobrevoar o oceano. Então, de súbito, sucede uma falha qualquer e começo a perder altura. Para que o balão volte a subir, e eu alcance terra firme, terei de lançar, borda fora, o máximo de lastro possível.
Primeiro desfaço-me da carteira, a seguir da comida, da roupa (mas não dos sapatos), das pulseiras e anéis e só depois atiro fora os livros e os discos.
Lembrei-me do sonho do balão enquanto, nos primeiros segundos deste novo ano, trincava as passas propiciatórias e formulava desejos. Compreendi, de repente, que depois de lançar borda fora tudo aquilo que poderia impedir o balão de ascender, ainda assim, não perderia o essencial. O essencial não tem peso: o amor, a saúde, ou o saber. Aquilo que peço, afinal, para não perder, ou para alcançar, enquanto trinco as primeiras passas.
Eu sei – já posso ouvir até as vozes trocistas -, que isto parece a alegoria singela de um manual de auto-ajuda. Bem, o que querem?, hoje sinto-me propensa a alegorias singelas.
Aliás, proponho-vos outra: continuamos no balão e ele, oh desgraça!, insiste em perder altura. Se as memórias tivessem peso quais seriam aquelas que primeiro lançariam ao abismo? Quais seriam aquelas de que nunca se separariam ?
No meu caso concluo que mais facilmente deitaria fora o passado recente, mesmo as tardes de sol, do que as recordações que guardo da minha infância perdida – incluindo os dias chuvosos. Fui mais feliz nesse tempo? Não sei. Fui feliz de uma forma mais inteira, creio, porque não existia futuro e tão pouco me doía o passado. (...) Sinto, por outro lado, que o essencial da minha personalidade foi moldado nesses dias. Perdê-los seria perder-me de mim. Por isso escolho a infância. Há outras memórias que não quero, ou não posso perder: o meu primeiro beijo; a minha primeira noite no deserto; a madrugada em que o velho Samir, o meu avô paterno, me mostrou o sol a nascer em Anjuna.
A ideia de recomeço, que é o que nos propomos ao festejar o Ano Novo, sempre me pareceu feliz. Evidentemente, não se recomeça nada, continua-se, o mais que podemos é seguir por caminhos diferentes. Também pensei nisso enquanto trincava as passas. Não quero para este novo ano uma vida nova. Esta fica-me bem. Também não peço nada que seja preciso declarar na Alfândega. Dai-me, Senhor, somente o imponderável. O resto deixai comigo. Não sei o que se passa com a maioria das pessoas mas comigo são sempre mais passas que os desejos. Não faz mal. Eu gosto de passas. "
da Faíza Hayat